Eu pensei que o mundo fosse sólido, mas o filósofo disse que era líquido. E pensando bem, ele deve mesmo é ser gasoso.
As certezas acabaram…
Ontem à tarde estava enfrentando a quarentena tentando encontrar uma atividade gostosa que envolvesse toda a família e desse menos trabalho com João Luiz.
Cinema em casa foi a opção que se encaixou na proposta.
Entre encontrar o filme e acomodar o menino, dei uma espiada no zap.
Como de costume, o pau tava quebrando: medos, reclamações, queixas políticas e econômicas de todo gosto.
A cabeça esquentou rápido. Lembrei logo do plano de tomar um açaí.
Dessa vez não posterguei mais o intento. A situação reclamava o gelado.
(Abro um parêntese para explicar que Lillian e JL não tomam açaí. Mesmo diante de várias ofertas, ambos declinam sem pestanejar, não obstante a tentativa sincera de Lillian, que sempre quis gostar da iguaria, mas nunca obteve sucesso. Pede mais para manter a reputação de chimona, mesmo por uma tradição familiar, o que todavia não chega a ofender a integridade de minha sobremesa).
Feito o necessário esclarecimento, retorno ao momento glorioso da tarde.
O cenário é o seguinte: Lillian pintando na sala, JL e Luiza no sofá, o filme começando e eu na poltrona segurando tranquilamente meu pedaço de paraíso.
Empunho a colher com a destra e uma banana prata com a canhota.
It’s time!
Mal começo o deleite, JL olha pra mim curioso.
– O que é isso, papai?
Eu, sabedor do futuro, com a segurança de quem conhece um mundo sólido e cheio de certeza, respondi tranquilo e estratégico:
– É açaí! Quer?
Eu estava tranquilo porque sabia que ele não queria. Sempre recusa porque fica cabreiro com a cor escura.
Digo que a ação foi estratégica porque eu logo estendi a colher na direção dele, demonstrando calma e desapego.
Sabe quando sua mãe te empurra uma colher de algo que você nunca comeu e acha feio…
Pois é. Imediatamente você recusa e ainda diz: não gosto (mesmo sem ter experimentado).
A regra é que a mãe insista pra que a criança prove e não se prive de novos sabores, texturas e nutrientes.
Mas eu não sou mãe e jamais insistiria com meu pequeno (cof, cof).
Então, dito e feito. JL recusou e eu segui lépido e fagueiro.
Pouco tempo depois, um sinal destes tempos estranhos começou a se manifestar.
Eu senti o ambiente mudando e percebi que o menino havia abandonado a tela e estava assistindo, concentrado, ao meu deleite.
Fiquei desconfiado, mas continuei.
De repente ele dispara, resoluto:
Eu quer papai!
Gelei, mais que o açaí, mas já era tarde. Agora eu tinha que correr o risco.
Limpei a superfície retirando aqueles acompanhamentos, que fazem mal a menino novo e dei uma colherinha de açaí puro.
Esperei a reação…
Aquele segundo de expectativa se arrastou até o rostinho dele mostrar a resposta se transfigurando num sorriso.
Minha certeza evaporara no ar! Eu havia entendido tudo, sem que ele precisasse dizer palavra.
Num instante tudo tinha mudado.
E agora as coisas estavam piores: ele queria mais.
Afirmou que era gelado e perguntou se era sorvete.
Esclareci que não, numa tentativa inocente e desesperada de fazer com que ele não associasse a coisa boa.
Essa era minha última cartada.
Mas neste momento já era tarde demais…
Ele olhou pra mim com aquele sorriso pueril de quem não conhece a avareza por comida e disse com brilho no olhar: papai, quer mais!
Como pai dedicado e prudente, logo separei um pouquinho no copo pra ele não vir dividir o pote grande comigo.
Dei o quinhão dele e tomei o meu, calmo e distraído.
Já nos últimos pedaços, que todos sabem que são os melhores, o menino olha pra mim e pede mais.
MAIS?! (gritei surdamente dentro de mim).
Dei mais uma colherinha e tive que adiantar os últimos bocados se não quisesse que o estrago fosse ainda maior.
Terminei com a barriga gelada, a cabeça mais calma, mas o coração…o coração perdeu o sossego de não dividir o açaí com ninguém.
Tive a certeza de que no mundo de hoje, certezas não existem mais.



(Em 26 de março de 2020)
Hehehehehe amei