Na segunda metade do século passado, havia, no interior do nordeste brasileiro, duas crianças que se “criaram juntas”. Vivam na “roça”, como se dizia por lá.
Moravam em propriedades rurais contíguas. Uma delas grande e imponente, para o que existia de estrutura à época: casa grande de madeira, curral bem feito, cercas bem postas, fruteiras ao redor da sede sempre irrigadas e carregadas, e um plantel de 10 mulas para escoar a produção de cacau da fazenda. Lá também tinha um pequeno poço artesiano que foi cavado manualmente, mas cuja vazão não fazia frente às necessidades da propriedade. Por isso, no dia a dia, uma ou duas bestas eram deslocadas para buscar água numa cacimba que dista uma légua da sede e faz divisa com a outra propriedade.
O sítio ao lado é mais acanhado, uma casinha de pau-a-pique, uma pocilga com uma porca prenha e um barrão, algumas poucas galinhas que se empoleirava soltas na mangueira do terreiro e uma bestinha que se arranchava em um pequeno biombo improvisado.
Mourinho morava na fazenda, seu pai já nasceu aqu, logo depois que seus avós desembarcaram de Portugal.
Eusébio, que todo mundo chamava de Biu, era natural daquelas paragens por parte de pai, mãe e parteira.
A notável diferença econômica que marcava as condições das crianças não foi obstáculo para que se tornassem amigos inseparáveis assim que se conheceram na escola rural.
Quando atingiram 12 anos, Biu deu por encerrados seus estudos e passou a se dedicar integralmente à lida na roça com seus pais.
Mourinho, por sua vez, foi morar na casa de sua tia em uma cidade maior, tendo concluído os estudos aos 18 anos, quando retornou para a Fazenda para aprender a administrar com seu pai.
Os tempos passaram sem alterações notáveis nas condições das famílias dos dois amigos. Eles continuam nutrindo aquele bom sentimento de uma amizade antiga e confiável, construída desde os tempos da mais cristalina pureza d’alma.
Sempre que precisavam, não se acanhavam em conversar e pedir ajuda nas coisas mais triviais: emprestar uma enxada, um retalho de pano, um caçuá, uma besta. Era o equivalente a pedir uma xícara de açúcar ao vizinho, pra quem vive na cidade hoje em dia.
Ao nascer seu primogênito, Bil ofereceu seu filho para que fosse batizado pelo amigo e vizinho Mourinho, que aceitou a proposta. Eram compadres.
Na idade madura, cada um dos amigos assumiu a responsabilidade pelas terras das respectivas famílias.
Bil continuava com uma bestinha, mas a fazenda de Mourinho já contava com quase uma centena de muares.
Ao final da tarde, quando o sol estava esfriando, todos os dias os compadres se escoravam no mourão da cerca para conversar, sempre quando Bil estava retornando ao seu ranchinho para arriar sua única mula.
O compadre interceptava-o e dizia: se achegue compadre, vamo prosear um pouco. Mal Bil apiava, Mourinho pedia:
- Compadre, vc pode emprestar sua bestinha pra pegar um pouco de água aqui pra Fazenda?
A resposta de Bil era sempre a mesma.
- Claro, meu compadre. Essa bestinha aqui não é minha não. É nossa!
Os amigos ficavam conversando, enquanto o fazendeiro destacava o capataz para pegar água com a mulinha emprestada pelo amigo.
Anos se passaram com essa mesma rotina. De segunda a sábado, porque domingo Bil encerrava a peleja quando o sol esquentava.
Já decorrido mais de ano, cresceu o sentimento do caseiro que ficava intrigado para saber o motivo de seu patrão, tão rico, usar a única mulinha de seu compadre, enquanto tinha um plantel descansando à sombra.
Certo dia, quando percebeu que o patrão estava mais de bom humor, demorou-se ao seu lado após devolver a besta de Bil. Quando Bil deu as costas, ele questionou:
- Pratão, pru modi que o senhor pede todo dia a bestinha de seu compadi, sendo que o senhor tem muito mais que ele descansando na sombra?
Ao que Mourinho respondeu sério, mas com um sorrisinho discreto de canto de boca:
- Porque enquanto meu compadre besta tiver besta, minhas bestas não padecem.
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O que o fazendeiro não contava era que seu amigo não era moco. Tinha o ouvido bom e escutou com nitidez a pergunta e a resposta.
Que decepção! O coração pesou. Então quem estava sendo feito de besta era ele, Bil.
Como ele não havia percebido nada durante esse tempo todo?
Chegou em casa e naquele dia banhou e não comeu. Remoeu aquela resposta a noite toda em sua mente. Pensou em dizer as piores ofensas que guardava em seu curto repertório de homem do campo para retribuir a amizade ao seu compadre. Diria a lista completa, até aquelas piores…as do fim.
Amanheceu mais calmo e antes de sair pra lida, deitou na rede do alpendre e ficou refletindo amuado. Buscava uma resposta para saber como se comportaria diante da situação, que com certeza se repetiria tão certa e pontual quando o cair da tarde.
Saiu de casa atrasado. O céu já estava claro. Mas quando chegou no roçado, já tinha resolvido. “Essa folia acaba hoje. Ser bom é diferente de ser besta. Basta!”
Final do dia, a rotina se repetiu, mas desta feita o desfecho foi diferente.
Mourinho interceptou Bil, como esperado, e pediu sua bestinha. Mas dessa vez ele negou. Disse que ainda usaria o animal. Ao que seu compadre silenciou e perdeu interesse na conversa.
Noutro dia, a contraprova: novo pedido, nova negativa.
A conversa esfriou tão rápido quanto um café esquecido no tempo. A “amizade” seguiu o mesmo destino.
Assunto encerrado.
Besta não!
…
Como eu disse, essa história eu não criei não. Foi Leide (minha chefe) quem me contou. Eu só floreei.
Em algum dia normal, enquanto estavamos no trabalho, relatei um ocorrido e ela percebeu que eu estava sendo feito de besta.
Ela podia ter dito: enquanto você deixar, sempre terá algum “amigo” pronto para te fazer de besta.
Mas preferiu usar desse conto popular pra me dizer de uma forma bem ilustrativa e contundente.
Hoje, quando identifico uma situação assim, sempre repito essa história, na versão original e bem mais resumida, só pra dizer, ao final: enquanto meu compadre besta tiver besta, minhas bestas não padecem.
Há de se ter limite, respeito e reciprocidade nos relacionamentos, independente de qual seja a natureza do vínculo.
Porque ser bom é diferente de ser besta.