João Luiz adora ouvir histórias antes de dormir.
E foi muito interessante para nós (pai e mãe) perceber o quanto nossa criatividade é limitada na contação de histórias. A gente sente a obrigação de contar uma narrativa certinha e formal, que “faz sentido” e tem começo, meio e fim.
Não conseguimos criar uma fantasia de improviso, então nosso repertório fica bem pequeno. Mesmo com o cardápio limitado, nós perguntamos que história ele quer ouvir.
Volta e meia o pequeno fala de um desenho, mas a campeoníssima é a história de Abeia.
E pensando bem, para nossa família, é uma história que merece ser contada.
“Abeia” a quem JL se refere, é na verdade Baleia, nosso cachorro de raça.
Um belíssimo cão de porte médio, pelo preto (e hoje brilhoso), com detalhes caramelo e branco.
Ah! A raça, você pode estar se perguntando.
Baleia é um puro sangue, tem pedigree. É um autêntico Brazilian Street Dog. Em tradução livre: ele é um vira-lata, um SRD, um cachorro gué, como dizemos por aqui (nem sei se escreve assim).
Mas sustento. Baleia tem puro sangue. É um vira lata por parte de pai, mãe e parteira. Tem estirpe!
Hoje faz parte de nossa família e semana que vem será o aniversário dele.
Eu não sei exatamente porque JL tem fascinação, mas a história é a seguinte: Baleia era um cão de rua, magro e sofrido, mas brincalhão como ele só.
Essa sempre foi a marca registrada dele. Quando passou a frequentar a rua aqui de casa, se instalou nas cercanias do Espetinho, o Point do Caruru (recomendo fortemente, aliás).
De dia ficava na sombra do toldo e brincava solto com Pituca. De noite filava a boia com os clientes do espetinho. Não tinha melhor.
Os vizinhos o chamavam de Clark. Sempre foi querido por todos aqui.
Pela manhã eu e Lillian sempre caminhamos com Cheetos para ele fazer as necessidades e dar aquela espairecida.
Pois bem. Quando Baleia apareceu, passou a ser aquela condenação para brincar com Cheetos
Só que Cheetos é calmo e sereno. Um lord, na mais perfeita expressão do termo (só se descontrola quando vê Bob preto… rixa antiga… outra história).
Nisso passamos a chamar Clarck de Baleia.
Lillian e eu sempre tivemos a ideia de adotar um cãozinho e o nome desse bendito seria Baleia, uma referência à personagem de Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
A Baleia de Graciliano teve uma trajetória sofrida e final trágico.
Já o nosso teve um começo complicado, mas um desfecho de novela da Globo, como vocês vão ver.
É que pra nós, só faz sentido cachorro vira-lata com um nome condizente. Não podia ser Boris Alfredo. Isso é nome de fidalgo, coisa de labrador.
Além do que, cachorro de pobre tem que ter nome de peixe, porque vive mais. Todo mundo sabe disso!
Já dizia Luiz Gonzaga. Nome de cachorro de pobre é cruvina, traíra, piaba, matrinxã, baleia, piranha…
E essa é uma das mais deliciosas ironias que Graciliano captou da vida real: Baleia vive no mar, mas não é peixe, é mamífero. Que onda…[com trocadilho].
E sobre o nome, quem não conhece pensa que é uma fêmea. A Baleia. Parece que “baleia” é um substantivo epiceno, a mesma forma escrita contempla os dois gêneros. E o nosso é macho.
Então não temos a impropriedade do termo. E no final ficou ainda mais engraçado.
Outra ironia é que Baleia chegou esquálido. E sendo comido vivo por uma infecção que o consumia rapidamente.
Que fique claro. Não tínhamos pretensão de adotar Baleia.
Àquela altura, ele era só um conhecido da rua, com quem simpatizamos pelo seu jeito cativante.
Mas um dia o brincalhão Baleia estava quieto. Lillian estranhou, mas seguiu viagem.
No outro dia, estava triste, parado.
No terceiro dia, o antes saltitante cãozinho se encolheu à aproximação de Cheetos.
Ao olhar mais detido, Lillian percebeu que a face de Baleia estava enorme e deformada, aparentando ter quebrado o osso.
Ela não aguentou e trouxe ele para casa para dar socorro.
Lembro como hoje. Eram os últimos dias de maio, uma terça, final das minhas férias e eu estava gostosamente esparramado no sofá curtindo o sossego enquanto JL dormia.
De repente Lillian irrompe aos prantos, sem me dizer o motivo do desespero, o que só fazia aumentar o meu.
“André, eu tô sem aguentar. Venha aqui. Venha ver.”
“Lillian, pare de drama que você sabe que eu não gosto disso. Diga o que foi!”
“Não. Venha ver, venha ver, Baleia…”
Ele estava mal. Mal mesmo. A cabeça deformada, o pelo caindo ao toque, a magreza de mostrar os ossos. Quando percebi, meu pé estava úmido. O pus estava minando da cabeça dele.
Levamos ao veterinário. O pus foi drenado pelo abscesso com facilidade, mas ele estava com tanta dor e medo que gemeu e se debateu. Vi quando a lágrima escorreu (a minha).
Resultado: cachorro de rua. Tomou 15 dias de antibiótico e pomada, mas com comida e descanso, em 4 dias já tava novo!
Recebemos o apoio da @abc.ita e castramos logo para ajudar a controlar a natalidade da população de rua, bem como evitar DSTs.
Arcamos com o tratamento e cuidamos dele. Nos sentimos felizes e úteis.
Parecia que o ciclo estava fechando. Começamos a liberá-lo na rua, pois o objetivo era só dar lar temporário e reabilitar. Ele era, literalmente, bicho solto.
Retornava no final da tarde, comia e dormia no quentinho, se abrigando da chuva e frio do inverno do Nordeste.
Eis que num domingo, eu chamei para entrar, mas ele não veio. Deixei na rua e fui tirar minha sesta despreocupado…
Duas horas depois, ele não havia aparecido. Quatros horas e nada. Anoiteceu e nada…
Noite complicada. Cinco da manhã de segunda e Cheetos latiu de dentro do quarto. Me vesti rapidamente e quando abri a porta da rua…
Lá estava ele. Com a pata esquerda quebrada, pendurada!
Que situação! Cirurgia na certa. Fratura em três pontos. Placa de platina.
Recebemos ajuda de Iza, que emprega seu amor na causa animal. Ela encaminhou Baleia para o cirurgião e foi conosco para Aracaju. Obrigado!
Segunda despesa alta. Dessa vez abrimos uma vaquinha virtual e fomos correspondidos. As doações cobriram o valor da cirurgia; nós pagamos medicamentos, exames e demais despesas.
[Aproveito o registro para agradecer a todos que ajudaram. Nós também participamos desse tipo de iniciativa e nos sentimos contemplados pela solidariedade e pela lei do retorno].
Mas, como dizem, desgraça pouco é bobagem. Depois da cirurgia ele continuou com a hemorragia no local da lesão. Uma investigação mais detida e…doença do carrapato.
Foram 45 dias de tratamento intenso. Nesse momento já havia um laço que não podia ser desfeito.
Ah. Outra agravante. A cicatriz da ferida não fechava. Novos exames, novo resultado: calcificação excelente, mas teve rejeição à platina.
Segunda cirurgia, terceira reabilitação. Essa só por nossa conta.
Ele não era mais um cão de rua. Agora fazia parte da família.
Para preencher o cartão de vacinação, me perguntaram o nome dele. Não tive dúvidas. Estufei o peito e bradei: Baleia Costa, como a mãe!
Depois de 60 dias exaustivos de tratamento, sacramentamos o dia do fico. Baleia aos poucos foi se adaptando a nossa casa e nós, a ele.
Adaptação foi gradual, com pequenos percalços, registre-se. Mas hoje ele está totalmente incorporado às nossas vidas. Relação harmoniosa.
Ele ganhou casa, comida, roupa lavada. Nós ganhamos a companhia de um coração de ouro. Um olhar doce como mel. A alegria em quatro patas.
Agora só sai para rua debaixo de minha vista. Não se adaptou à coleira, mas responde ao chamado para voltar e se afastar das pessoas.
Quem vê ele solto pergunta se não foge. Eu meneio a cabeça e riu: ele vai fugir pra onde? Pelo contrário. Morre de medo de ficar, quando vamos passear.
Continua com estripulias. Ao abrir o portão, corre atrás das motos. Não tem jeito. Sangue de cachorro gué.
Passa o dia me atocaiando para ver se eu vou sair de carro. Adora um passeio.
A noite faz a segurança da casa, mas a tarde dorme no ar-condicionado. Ele merece!
Ganhou dez quilos. O chassi de vira-lata não deixa que se perceba tanto, mas está com um lombo pronunciado. Gordo feito “fi de major”. O pelo está brilhoso e ele, mais bonito que nunca.
Semana que vem completa um ano conosco e esse texto é um registro e uma homenagem.
Como eu disse, para nós, a história de Baleia merece ser contada.
Faz sentido JL gostar tanto de ouvi-la. É roteiro de novela com direito a muito drama, reviravolta e final feliz.
Eu já cansei de contar essa história. E agora quando JL me perguntar novamente sobre a história de “Abeia” eu vou entregar uma cópia impressa para ele.
“Se vire, filho. Eu já fiz a minha parte.”